Venezuelanos ficam sem apoio para conseguir documentos migratórios após Trump cortar verba de agência da ONU


Corte de verbas impactou a Organização Internacional para as Migrações (OIM) que ofertava serviços como emissão de CPF, regularização migratória e encaminhamento para atendimentos na saúde e educação para crianças. Migrantes relatam dificuldades para ter acesso à documentos necessários após fechamento da OIM
Caíque Rodrigues/g1 RR
Sem contato com a família, sem acesso à internet ou a um computador para preparar currículos, e sem suporte para obter documentações como emissão de CPF e regulamentação migratória no Brasil. Essa é a realidade dos migrantes venezuelanos em situação de vulnerabilidade que eram atendidos pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), em Boa Vista. A instituição suspendeu os serviços que oferecia após o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, cortar fundos para ajuda humanitária.
A OIM suspendeu por 90 dias os serviços em Roraima e no Amazonas desde a segunda-feira (27). A agência da Organização das Nações Unidas (ONU) fornecia atendimentos básicos aos migrantes como apoio na emissão de CPF, regularização migratória e encaminhamento para serviços essenciais como saúde e educação para crianças.
A organização tinha os Estados Unidos como um dos principais financiadores das operações humanitárias da OIM no Brasil. A determinação de interrupção imediata dos trabalhos após notificação do governo americano, por meio do Escritório de População, Refugiados e Migração do Departamento de Estado dos Estados Unidos (PRM) e da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID).
“A OIM Brasil está trabalhando junto ao escritório regional no Panamá e a sua sede em Genebra para se manter operante no país. Porém, a medida impactará diretamente um número expressivo de suas operações, 60% dos nossos staffs são financiados por estes fundos”, disse a OIM.
PTrig, um dos lugares em Boa Vista onde a OIM atuava antes do fechamento
Caíque Rodrigues/g1 RR
🔎 Entenda: Migrantes e refugiados venezuelanos que entram no Brasil por Roraima são atendidos pela Operação Acolhida, força-tarefa criada em 2018 pelo governo federal. A Acolhida atende pedidos de refúgio, regulariza documentação, administra abrigos e fornece alimentação.
O trabalho é comandado, majoritariamente, pelo Exército. Mas para realizá-lo, a força-tarefa tem apoio de mais de 100 instituições, entre organizações nacionais e internacionais, como as da ONU, e entidades civis. O orçamento anual do governo brasileiro para a operação é de R$ 300 milhões.
Serviços ofertados pela OIM
Entre as ações realizadas para os migrantes venezuelanos em Roraima, a OIM atuava com orientação e escuta especializada para pessoas em situação de vulnerabilidade e o encaminhamento para serviços essenciais, como saúde, assistência social e apoio a direitos trabalhistas, com foco em exploração laboral e violência de gênero. Além disso, era realizado apoio na emissão de documentação, como CPF, regularização migratória e carteira de trabalho.
Além da OIM, instalações sanitárias da Caritas Brasileira que ofereciam serviços gratuitos no estado foram fechadas por tempo indeterminado. Com isso, várias pessoas em situação de vulnerabilidade não tem como tomar banho, usar o banheiro, escovar os dentes e até beber água potável.
Instalações sanitárias da Cáritas foram fechadas em Roraima.
Yara Ramalho/g1 RR
A OIM estava presente em Boa Vista e em Pacaraima, na fronteira, onde atendia os migrantes nos abrigos da Operação Acolhida. Nessa terça-feira (28), o g1 esteve em dois pontos onde a agência operava em Boa Vista, no Posto de Triagem (PTrig) e no Posto de Recepção e Apoio (PRA), e não havia nenhum funcionário da organização. Migrantes relataram estar “sem saber o que fazer”.
“Não tem mais quem nos ajude. Tinham muitos serviços relacionados à viagens, autorizações familiares, assistência social e para quem ia trabalhar com vagas específicas. A OIM fazia esse trabalho. Ainda mais para mim, que vim para o Brasil com três filhos pequenos”, contou a cozinheira Elizabeth Barela, 37 anos, que esperava atendimento no PTrig.
O Brasil é o terceiro país da América Latina que mais recebeu refugiados e migrantes venezuelanos, ficando atrás da Colômbia e do Peru, de acordo com dados da Plataforma Regional de Coordenação Interagencial R4V. Roraima é a principal porta de entrada para venezuelanos que buscam melhores condições de vida no país.
‘Sem atendimento e sem ajuda’
Pequena fila para atendimento no PTrig, da Operação Acolhida, após fechamento da OIM
Caíque Rodrigues/g1 RR
Na manhã desta terça, o atendimento no PTrig seguia normal, com uma pequena fila de migrantes esperando. A OIM, que ajudava no atendimento, já não estava lá. Quem atendia os migrantes eram funcionários de uma empresa terceirizada, a Pegasus, que ao menos desde 2022 trabalha na Operação Acolhida.
Uma das funcionárias que fazia a triagem explicou que, com a saída da agência, o posto está atendendo apenas causas urgentes, de migrantes recém-chegados na capital. No entanto, a atualização de documentação de pessoas residentes estava suspensa.
Já pela tarde, não havia mais atendimentos. Um avisou foi colado no portão em português e em espanhol informando que “a Operação Acolhida está desenvolvendo medidas para que os serviços se mantenham inalterados”.
Comunicado preso ao portão no PTriga, da Operação Acolhida, após saída da OIM
Caíque Rodrigues/g1 RR
“Reforçamos a importância do trabalho conjunto para a superação dos desafios. Reafirmamos nosso compromisso com o ordenamento da fronteira, acolhimento e integração com a convicção de que, juntos, podemos superar quaisquer desafios e seguir transformando vidas”, dizia o aviso preso ao portão.
Elizabeth Barela esperava próxima à grade da entrada sentada em uma canga junto com os três filhos – uma adolescente de 17 anos, um de 16, e a mais nova, de 13. Natural de San Felix, na Venezuela, ela chegou em outubro do ano passado no Brasil e contava com apoio da OIM para ser interiorizada (como é chamado o ato de levar o migrante venezuelano para outros estados brasileiros).
Elizabeth Barela, de 37 anos, espera atendimento no PTrig com os três filhos
Caíque Rodrigues/g1 RR
“Ainda preciso da OIM. Estou sob proteção porque viajo com menores de idade, e a OIM é responsável por todo esse processo. Me disseram para aguardar o contato deles, que vão agendar comigo. Até a próxima semana vou ficar sem atendimento”, contou Elizabeth.
A OIM ajudava Elizabeth com as crianças e com processos como: interiorização e vagas de trabalho. De acordo com ela, eles faziam uma “análise completa para garantir que as pessoas estivessem prontas para viajar”. No processo de interiorização e triagem, a OIM atuava na identificação e encaminhamento de casos de proteção durante o processo de documentação.
“Se alguém tinha problemas de incapacidade, eles cuidavam desse processo também. Eu queria encontrar minhas irmãs que estão aqui no Brasil, uma em Santa Catarina, em Joinville, e a outra está em Mato Grosso, em Cuiabá”.
Sem contato com os filhos
Maria de los Angeles, 43 anos, não fala com a família na Venezuela há uma semana
Caíque Rodrigues/g1 RR
Maria de Los Angeles, de 43 anos, é natural de San Félix e está há um mês em Roraima. Ela veio com a filha mais velha e os seis netos. Na cidade venezuelana, deixou os três filhos adultos.
A última vez que falou com os filhos foi há uma semana, quando foi ao PTrig para expedir documentos migratórios necessário para interiorização.
Agora, sem ter dinheiro para colocar sequer crédito para ligações no celular, ela não consegue dar notícias. Quando conversou com o g1, tinha esperanças de conseguir tomar banho no espaço da Cáritas Brasileira, que também fechou.
Para se comunicar, você precisa de créditos no telefone para usar internet. Antes tínhamos o serviço, mas foi cortado. Fecharam a Caritas e a OIM até novo aviso. Como venezuelanos, pedimos, por favor, que nos atendam bem, que tragam os serviços de volta.
O que resta para Maria, a filha e os netos, é a saudade de quem ficou no país vizinho aguardando notícias.
“Sinto muita falta. Nós, como venezuelanos, desejamos que a situação econômica na Venezuela melhore. Somos obrigados a buscar outros países para garantir um benefício, um bem-estar, e uma boa economia, pois não temos isso na Venezuela agora, mas sinto falta de tudo lá”, desabafou ao g1.
Sem ter como conseguir emprego
Pedro Uva, 33 anos, chegou em Boa Vista em busca de emprego
Caíque Rodrigues/g1 RR
Um dos trabalhos feitos pela OIM era na ajuda para conseguir emprego aos migrantes, fornecendo suporte na confecção de currículos e nos envios. Pedro Uva, de 33 anos, está há seis meses no Brasil e trabalha como vendedor de bananas nas rua de Normandia, município ao Norte de Roraima, distante 186,7 km da capital Boa Vista.
Pedro veio à capital em busca de um trabalho de carteira assinada e contava com ajuda para conseguir fazer um currículo e enviar para vagas. Quando conversou com a reportagem, ele estava no PRA, sem saber como iria cuidar do próprio higiene no dia.
“Não tenho como fazer currículo, como usar internet, como ter Wifi. Não tem nem como fazer. Aqui não tem nada agora. Está tudo fechado. A gente não tem como fazer nada. Estamos largados aqui, na rua. Na rua”, disse.
Ele veio sozinho ao Brasil. Natural de Porto Ordaz, deixou os dois filhos e a esposa.
Suspensão por 90 dias
Instalações que atendem migrantes em RR são fechadas após governo Trump suspender ajuda humanitária
No período em que ficará suspenso em Roraima, a OIM informou que irá revisar os programas em curso e alinhar a ajuda externa às novas diretrizes de política internacional do governo americano.
Entre os projetos impactados está o “Oportunidades”, financiado pela USAID, que promove a integração socioeconômica de migrantes e refugiados, oferecendo capacitação profissional, cursos de português e suporte ao emprego formal para milhares de pessoas desde 2019.
Com a suspensão, milhares de migrantes podem enfrentar dificuldades no acesso a serviços essenciais como saúde, alimentação e abrigo, principalmente em cidades como Boa Vista e Pacaraima, onde as estruturas da OIM serão diretamente afetadas.
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